segunda-feira, 30 de abril de 2012

"É a Vida!" [27]

"Morte de um Filho


Mesmo que não seja filho único, quando nos morre um filho, como o meu Daniel Luís, a sua morte é a morte de uma parte do eu próprio, parte que não vai ser simbolicamente imortalizada.

...

Dos seis filhos que tivemos, o Daniel Luís, foi o segundo, rapaz como o primeiro, e a ele sucederam-se quatro raparigas.

Como algumas vezes sucede com os filhos segundos, manifestou desde muito cedo uma grande dificuldade em assumir uma identidade pessoal que lhe garantisse estabilidade emocional e capacidade para imaginar e construir um projecto de vida.

Muito difícil adaptação ao ensino, logo na Escola Primária, e penosa progressão até ao nono ano de escolaridade que repetiu e não concluiu.

Não aprendia com ninguém, só aprendia com a vida.

Aos 17 anos, fez-se ao mundo, Espanha, França, Bélgica, Suíça e o mais que nem sei, porque dele só sabíamos alguma coisa quando aparecia em casa onde ficava por curtos períodos. Fazia trabalhos sazonais, apanhou uvas no Sul da França, batatas na Bélgica, cenouras na Suíça, mas esta actividade era só para sobreviver. O que queria era viver intensamente, viajar à boleia para qualquer lugar, correr riscos pesados, experimentar tudo, das drogas leves ao sexo ocasional, sem vinculação a nenhumas regras exteriores, mas só e apenas às regras, poucas e simples, que foi construindo a partir das suas pessoais experiências de vida.

Passaram-se dois anos sem que dele tivéssemos qualquer notícia. Minha mulher e eu assumimos a sua morte, algures na Europa, e vivemos um luto sem nome por ser um luto sem corpo morto.

Um dia chegou, numa Harley-Davidson em 5ª mão, à hora de almoço como se tivesse saído de casa no dia anterior.

Senti a profunda verdade da Parábola do filho pródigo. O irmão mais velho, Manuel, um brilhante aluno, já na Universidade, sempre o tínhamos connosco e o amávamos. Mas aquele estava perdido e voltou, estava morto e ressuscitou, pelo que foi muito grande a nossa alegria e nem uma palavra de censura saiu da nossa boca.

Tinha encontrado um rumo para a sua vida. Era ajudante de cozinheiro num hotel da Suíça e logo que terminasse a validade da sua autorização de permanência viria para Portugal.

Voltou, tirou o curso de cozinheiro numa Escola de Hotelaria e trabalhou regularmente em Lisboa, Algarve e Porto, porque a sua natureza não lhe permitia que estivesse muito tempo num mesmo espaço físico.

Aos 33 anos, morreu.

Pagou um preço elevado pelo prazer de viver na aventura e no risco, mas foi feliz enquanto viveu.

A vida deu-lhe uma profunda e afectiva sensibilidade pelos pobres e pelos vadios (como ele foi), pelos doentes e por todos os que estivessem em situação de sofrimento. Só neste universo tinha amigos e não julgava ninguém. Algumas vezes tive de ir a casas pobres ver idosos acamados com febre e tosse, em fase terminal de tuberculose não tratada, e sentia como o estimavam e o elogiavam.

Nos últimos dias da sua vida, tivemos longas conversas e eu pude reconhecer que a vida que ele viveu, que eu sempre reprovei como uma vida má e insensata, sem valores, sem qualidade, até sem dignidade, segundo os meus padrões, tinha sido vivida com alegria e com intensidade. Quando, dias antes de morrer, me contou, divertidíssimo, como tendo adormecido numa valeta, acordou com um rato a passear em cima do seu corpo, eu compreendi que a felicidade de viver ou o viver em felicidade é um mistério indecifrável que se realiza nas pessoas de muitas formas. 'Na casa do meu Pai há muitas moradas' e eu creio, firmemente que o seu espírito já estará numa delas.

Uma forte hemorragia esofágica obrigou a um internamento urgente num hospital fora do Porto. Fui vê-lo na hora do almoço e estava numa maca para seguir para a enfermaria. Quis acompanhá-lo, mas ele disse-me: 'O Pai tem muito trabalho a esta hora. Não precisa de ir comigo que eu fico bem'. Compreendi que estava a despedir-se e senti que era a última vez que o via vivo. Nesse dia, às 6 horas da tarde, morreu pacificamente sem que nem o doente da cama ao lado se tivesse dado conta, como me disse quando lhe perguntei como é que o Luís tinha morrido.

A memória que tenho da sua vida é uma outra forma de imortalidade simbólica.

Ele está vivo em mim e só morrerá quando eu próprio morrer.

...

Se é verdade... que quando um filho nos morre, nós perdemos o nosso futuro, não é menos verdade que a vida que ele viveu, mais breve ou mais longa, continua presente na nossa própria vida de pais.

Foram necessários dois anos para que esta presença e pertença do meu filho em mim fosse primeiro um sofrimento, depois presença pacífica e, finalmente, uma pertença alegre.

Trago-o comigo com alegria e a sua memória, bem presente, tem-me ajudado a compreender e a aceitar comportamentos e atitudes de muitos à minha volta, que tenderia a rejeitar e que, agora, consigo, como ele o faria, ajudar em vez de censurar.

Somos, assim, feitos de duas metades."
Daniel Serrão


"É a Vida!" [26]


Quando morrermos estaremos nus, pois tudo o que é inútil nos abandonará.
Morreremos no chão e à Terra voltaremos!
Estaremos frente ao desconhecido tal como o lugar de onde viemos!

"É a Vida" [25]

"A morte não existe.
Existo eu e existes tu, que morreremos."
Daniel Serrão



(gostaria só de acrescentar aqui um aparte:  no dia 19 de Fevereiro deste ano, o blog Nau dos Descobrimentos fez 5 aninhos de existência! Estou contente por ele e por aquilo que ele me permite realizar!)